sexta-feira, 27 de março de 2015

Construindo e desconstruindo um saber

Ao trazer a esse ensaio uma reflexão sobre o saber, não vejo outro ponto que possa me servir de início, e até de propósito, senão Sócrates, filósofo ateniense nascido em 469 A.C., a quem se atribui a idéia de alguém que “sabe que nada sabe”. Essa reflexão sobre as possibilidades infinitas do pensamento, sobre as infindáveis perguntas a perseguir incontáveis e inencontráveis respostas é uma herança do pensamento socrático, que ironicamente jamais escreveu uma obra, não deixou um legado documental, como seus sucessores e seu principal aluno, Platão. Sabe-se de Sócrates o que foi dito dele por seus alunos. Sabe-se também que era, conforme descrito por seus alunos, um mestre que não queria seguidores. É possível que a conjunção de sua rejeição a um suposto domínio do saber, somado à tradição da transmissão oral do pensamento então reinante, tenham se juntado para impedir que tenhamos qualquer registro direto de seus pensamentos, que não conhecemos senão por intermédio dos que beberam “in loco” da fonte de suas reflexões, de seus discursos... seus alunos! Seguidores de um mestre que não queria ser seguido.
E que motivos colocam essa “rejeição” ao saber, à resposta afirmativa, como ponto de partida e, como d’escrevi acima, como um propósito em si para a minha própria reflexão aqui expressa? Voltamos ao nosso presente que nomeamos, do alto de nossa pretensão, como a era do conhecimento. Acreditamos ter controle sobre quase tudo, e perseguimos alívio para nossa angústia de existir no vasto conhecimento acumulado pela humanidade: nos super computadores, na engenharia genética, nos satélites que orbitam e tornam nosso planeta uma fotografia conhecida em nossas mentes e visitáveis em nossos computadores pessoais. Google Earth, Facebook, cirurgias à distância, medicamentos “infalíveis”, edifícios à prova de terremotos, tsunamis, furacões. Que mundo fascinante e quanta soberba! Pois o mais poderoso, o “invencível entre todos” pode borrar suas calças se não houver um banheiro próximo em um momento de aperto! É incrível como o mundo se espanta quando um gênio como o Sr. Steve Jobs perece de forma rápida e implacável, diante de uma doença que há décadas põe fim à vida de milhões de seres humanos. É como se algo se rompesse na ordem das coisas: um homem tão inteligente, poderoso, rico e capaz não deve morrer... Parecemos viver à sombra de uma ilusão tão simples e sem sentido quanto a possibilidade de se eternizar, ao menos para os ícones do mundo moderno, que embalam nossos sonhos como símbolos de um paraíso na terra. Tentamos erradicar males que não são senão a imagem refletida da essência do saber-se, pois o horror nos aflige soturnamente tanto, e pelas mesmas questões que afligiam os filósofos na época de Sócrates: quem somos, de onde viemos, para onde vamos, o que vem antes da vida e o que se segue a ela. Impregnados pelo conhecimento tentamos nos esquivar das dores de existir.
Mas devo recuar diante da tentação de me perder em meus próprios pensamentos, esquecendo o propósito e a disciplina a partir da qual proponho minhas colocações: a psicanálise. Há mais de 100 anos, o Sr. Sigmund Freud propôs uma maneira de dar lugar à dor de existir. Ele não tentou rejeitar, ele não “terapeutizou” o sofrimento, ele não duvidou de seus pacientes, ele não tratou, como se fazia, à margem do convívio social àqueles que buscavam seus cuidados onde o discurso médico os havia abandonado.
E o que vemos hoje, mais de 100 anos depois dessa fase inaugural de uma possibilidade de ouvir uma pessoa e aceitar sua singularidade? Um número crescente de “doenças psiquiátricas” e uma impressionante abundância de medicamentos para cada uma dessas “doenças”. Outro dia eu ouvi de um amigo que ele “É” um bipolar tipo II... que diabos será isso? E como é possível dar um diagnóstico como um rótulo definitivo: é bipolar, é depressivo, é... uma pessoa tem sua identidade definida por um diagnóstico? Lembro de um médico que eu respeitei muito, cujo cuidado com o paciente sempre foi a base e o fim de seu trabalho dizendo, há uns 30 e tantos anos, que os médicos não conheciam mais seus pacientes, e que não sabiam examiná-los, porque o atalho dos exames era um caminho muito mais fácil a ser trilhado. E não havia então os exames de imagem modernos, as ressonâncias e tomografias, panacéias da prática médica contemporânea. É claro que o uso das facilidades e a possibilidade de abrangência da prática médica bem equipada são benefícios inegáveis, mas há momentos em que, literalmente, esquece-se do paciente. Ouvi certo dia, de um médico conhecido meu, a seguinte preciosidade: lidar com paciente “enche o saco!”. É bem certo que deve se tratar de uma absurda exceção, ou assim eu quero crer. É também verdade que conheço médicos cujo compromisso com a saúde e o bem estar de seus pacientes são inquestionáveis, e já tive a oportunidade de entregar aos cuidados de profissionais absolutamente sérios e comprometidos a vida de pessoas muito amadas, sem jamais ter motivos para qualquer fala que não fosse elogiosa e agradecida. Mas meu questionamento, como deve indicar a digressão que me serviu de início para essa jornada é dirigido a esse saber moderno que ultrapassa os limites da coerência e, ao virar arrogância, perde todo seu brilho e sua valia.
Aqui deixo de lado a filosofia e a “ordem médica” para retomar e dar foco à perspectiva apresentada, há mais de 100 anos, insisto em dizer, pela psicanálise. Ela começa com uma proposição tão simples e óbvia que chega a parecer ingênua: “diga tudo o que lhe vier à mente”. É o praticante de psicanálise que, diante de seu analisante, confere à sua palavra o estatuto de verdade! A sua própria verdade, a sua história, a sua singularidade, aos seus recursos (inclusive os sintomáticos) e a uma via própria de elaboração e percurso. O que é dito por um analisante é!! Isso não é nem simples, nem ingênuo e representa um salto às possibilidades do ser que se apresenta diante de um praticante de psicanálise. O praticante de psicanálise está, por princípio, destituído de respostas, de saberes acabados e enganosos, e suporta, junto com seu analisante, a angústia de buscar seus próprios recursos, suas únicas e indissociáveis questões e suas respostas singulares, enriquecedoras, e inexoravelmente limitadas. Traduzir essas idéias é dizer que não adianta mostrar a uma pessoa que sofre de anorexia a sua própria imagem em fotos ou espelhos... é saber que ao se ver gorda, isso é tão verdade quanto qualquer obra da engenharia. É entender que um toxicômano SABE que vai morrer pelo uso indiscriminado de drogas ou álcool, e entender que essa foi a via que ele produziu para responder a angústias que nem foi possível nomear. É dar lugar à verdade psíquica, a única que vale para um sujeito único e singular, e à qual só se pode ter acesso e meios de mobilização e elaboração psíquica ao aceitar que ele é o que diz ser! O resto é pasteurização, é tentar erguer uma taça onde ela não está... não tem efeito!
Essa promessa, que tantas vezes parece vaga, de um processo psicanalítico, é um caminho extenso, rico, por muitas vezes difícil, mas próprio. Uma jornada a ser sustentada para que alguém possa ouvir seus próprios clamores, seus medos, seus desejos, suas proibições, conceber e revisitar seus contornos. Sem mágicas, sem prazos, sem falsas promessas, sem vida eterna.
Tome a palavra. A palavra é sua!

segunda-feira, 11 de março de 2013

O luto e a psicanálise


No mundo contemporâneo – talvez também fossem assim em tempos primevos – existe muito pouca convergência sobre a questão do sofrimento humano. A única coisa que parece uma certeza é admitir, que por um motivo ou outro, o ser humano sofre. E esse sofrimento vai muito além da dor física, das mazelas corporais, do campo biológico, embora possa manifestar-se por qualquer uma dessas vias.

Pode-se dizer que existe, por parte da “ciência médica”, impregnada de um saber que transita entre a possibilidade de ajudar e o pavor da própria ignorância, uma tentativa permanente de trazer para o campo das patologias, onde reina soberana, todas as formas de sofrer. Penso nos artistas e poetas que, como tão bem expressa o apaixonado Vinicius de Moraes, sempre se fizeram valer de seus lamentos em forma de canção[1], para dar vida às suas dores, encantando o mundo com seus prantos, e concedendo a si próprios um lugar de significância e dignidade para sua dor. Que triste seria se os “heróis da medicina moderna” obtivessem sucesso nessa empreitada de alguns de seus adeptos, de “eliminar o sofrimento humano”.

Mas passando das divergências ao consenso, não deve ser motivo de estranheza para ninguém, que o luto apareça, para quase qualquer pessoa, como a dor mais aguda, mais cortante, um rasgo na vida de quem fica, a cicatriz profunda pela ausência de quem se ama.

A morte, quando aparece, é sempre “de repente”. Ela sempre assusta os que estão próximos, questiona, marca de forma indelével as suas vidas, que experimentam um prenúncio de seu próprio inevitável fim. Parte da ilusão egóica que sustenta a soberba possível do ser de fala é perdida, destruída, esmagada brutalmente pela interrupção da jornada daquele que, até então, partilhava a mesma estrada. Agora, naquela figura, naquela pessoa, não há mais luz, não há mais palavras, não há mais ações... silêncio e vazio são a única resposta. A morte só pode ser percebida pelo seu negativo, ou seja, pela ausência de quem se foi. 

Buscam-se as lembranças, tentativas são feitas de apegar-se a elas. Um apelo oco por algo que possa reverter o que não tem reparação. Do choque e desespero, restarão a tristeza e a saudade. E aquele vazio sempre o será.

Qual o caminho possível para uma psicanálise diante dessa experiência tão crua e brutal? A psicanálise tem, como um dos seus princípios mais elementares e essenciais, o compromisso radical e inequívoco de dar lugar. O luto na psicanálise pode – e deve – ser vivido: o sofrimento é ouvido, “acolhido”, não com “um tapa nas costas”, ou uma tentativa de tamponar o que não pode ser escondido, mas com a dignidade de oferecer a palavra para que a pessoa fale de si, da sua dor, da sua experiência, das suas lembranças. E fale tudo o que for possível e preciso – ainda que impreciso – para que se possa viver com isso, “fazer com isso”.

A experiência psicanalítica passa pela inscrição de um lugar, de um campo, de uma história de um propósito, a construção de um ser de desejo. Ela inclui o que outras disciplinas querem deixar de fora, aceita e elege à condição de verdade aquilo que alguém fala de si. Para a psicanálise, uma pessoa é aquilo que diz ser, sem reticências.

Esse é o espaço oferecido e sustentado pelo praticante de psicanálise no dispositivo psicanalítico. Esse é um convite a todos que sofrem para que façam uso da palavra pela via da psicanálise. Um convite para que as pessoas se permitam a oportunidade de serem ouvidas em suas verdades, e possam construir uma vida sem falsas promessas ou milagres passageiros. Um convite à construção de novas possibilidades para velhos dilemas.




(1) Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não

Vinicius de Moraes, “Samba da Benção”

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A vida e suas (poucas) certezas


Volto a um tema já abordado anteriormente para, mais uma vez, tentar ampliar um pouco a visão e nossas reflexões sobre o assunto.
Todos já ouvimos – e falamos – que a única certeza que se tem na vida é a morte. Vou caminhar por uma “transgressão” a esse pensamento que, em verdade, é um outo caminho, uma vereda da finitude costumeiramente esquecida nessa frase que acabei de citar – ou repetir.

Temos duas certezas básicas na vida, em extremos opostos e caráter similar: o nascimento e a morte. Acho que ninguém vai questionar o fato de que nascimento e morte estão em extremos opostos, mesmo quando eles venham, tragicamente, a acontecer em momentos temporalmente quase idênticos. Não tenho a mesma certeza quando menciono a semelhança no seu caráter, e aí começa essa vereda de pensamento sobre a qual resolvi me debruçar nesse texto.
Suspendo temporariamente as palavras nascimento e morte para falar da vida. Podemos pensar na vida sob uma infinidade de perspectivas, mas uma delas é uma visão irredutível, o “mínimo divisor comum” a ligar e dar sentido a essa palavra: a vida é o lapso de tempo entre dois acontecimentos que localizam como tal todos os seres vivos, o nascimento e a morte. Como a idéia básica é refletir sobre o homem, vou seguir pensando somente no “ser de fala” que, como já mencionei em textos passados, carrega o prêmio e a sina de saber-se; de ter noção da própria existência, seu nascimento e sua própria morte.

Ambos – nascimento e morte – dão ao homem esse espaço temporal de suas experiências enquanto tal, e delimitam um campo de crescimento, de aprendizagem de “entrada na cultura” (ou na fala), de usufruto, de prazer, dor, angústia, e dúvidas. Quando falo de dúvidas, quero restringir esses questionamentos, pela direção que proponho para esse pequeno ensaio, àquelas que já mencionei como dúvidas “essenciais” do ser de fala: de onde viemos, quem somos, por que, e para onde vamos. A essas questões estão ligados todos os pensamentos sobre tempo e espaço, sobre finitude e infinito, onde tempo e espaço se opõe à fragmentação temporal de um espaço vital único e restrito, e oferecem a experiência do vazio de ser, como precedentes e permanentes à nossa experiência enquanto humanos.

Quero caminhar ainda um passo adiante para dizer que, em essência, nascimento e morte evocam, de perspectivas diferentes, as mesmas angústias, que são aquelas do escuro absoluto, do total silêncio, da ausência de nós mesmos. O vazio em sua definição interna mais absoluta!

Para que não caminhe mais com a idéia como fruto de uma reflexão pessoal ou isolada, vou recorrer, brevemente, às disciplinas (com uma licença para o que venho a abarcar sob essa nomenclatura) que, desde os primórdios da humanidade, vêm se propondo a enfrentar, cada uma à sua forma, essas questões e suas implicações: a religião, a filosofia, as ciências físicas e astronomia e a psicanálise.
Peço desculpas antecipadamente para poder apresentar uma visão simplista das disciplinas que não a psicanálise, visto ser esta a minha via de pensamento e visão de mundo, evitando os erros que eu, certamente incorreria se tentasse me alongar nos temas sobre os quais meus conhecimentos claudicam.

A religião, como já tive a oportunidade de mencionar, dá suas explicações pela via da crença e dos dogmas. É sempre bom pensar no significado da palavra, pois ajuda a entender sua gênese. Religião deriva da palavra latina religare, que significa, literalmente, religar. Trata-se de uma crença na possibilidade de refazer a ligação do homem com a divindade, da qual ele seria obra – sua principal obra, segundo as religiões monoteístas. Evito entrar no assunto de definição de religião, para não desviar demais o assunto, mas há quem venha me criticar dizendo que religião, por definição, são as monoteístas e que, portanto, eu estaria redundado ao dizer religiões monoteístas. Peço desculpas pela imprecisão, mas o faço em nome do pensamento que tento promover.
A filosofia tenta explicar, pelos meios e caminhos que os grandes pensadores percorreram – e ainda percorrem, para refletir sobre o mundo, a vida, suas determinantes, suas origens e seus destinos, os mistérios da existência.

A astronomia abandona os limites da existência individual, e vai buscar a origem do universo como o conhecemos (ou ainda nem conhecemos), desde a sua formação, até seus possíveis destinos – a extinção ou um retrocesso do processo de expansão do universo, sua contração, originando um novo “Big Bang”.

E a psicanálise? A psicanálise não explica: escuta! (*) Ela dá lugar à dor de existir, traduzida em palavras que reproduzem as imagens pictóricas que assombram o inconsciente e, à imagem de um vulcão, explodem em inibição, sintomas, atos e angústia. A psicanálise não responde a essas perguntas (ou feridas) mas, como a todas as questões da formação subjetiva de cada indivíduo em análise, permite o contato com essa cadeia de elementos que conformam, configuram um sujeito.

E onde ficaram nascimento e morte? Ambos expõem, segundo quero propor, a dor de saber-se finito.... nada antes, nada depois! É claro que as tentativas de colocar-nos, subjetivamente, integralmente, nesses espaços escuros de desconhecimento e dúvidas, trazem respostas sobre as quais não estou lançando dúvidas. Ou seja, não é minha intenção duvidar de nenhuma explicação, religião ou respostas para os momentos de nossa sentida (ou não sentida) ausência, mas dizer que o que vem antes da vida é tão angustiante quanto o que vem depois dela.

Eu não poderia terminar esse ensaio sem elucidar uma questão que diferencia, de forma muito importante, os eventos aqui abordados, do nascimento e morte. Eles são separados em valor, angústia e medo pela direção do tempo, vento que sopra de um só lado, em uma só direção. Embora o abismo do não ser preceda o nascimento tanto quanto ele vem a suceder a morte, a vida caminha em um só sentido, o que nos faz temer, muito mais frontalmente a morte do que o nascimento.

Contudo, e apesar das alegrias e celebrações que marcam os rituais do surgimento da vida, o evento do nascimento carrega, em sua essência, o mesmo mistério e angústia que acompanham o temor do que vem depois, ou seja, do que nos espera e, antes ainda, se algo nos espera, após a nossa morte.

(*) esse pensamento, exatamente nesse contexto de comparação das disciplinas, não é meu, mas foi expresso em um comentário sobre um texto desse blog pela minha amiga, supervisora, e "mentora" no mundo do pensamento psicanalítico, Karin de Paula.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O outro no espelho - adendo

Quando escrevi o texto anterior, que chamei de "O outro no espelho", tive algumas surpresas muito interessantes. A primeira delas foi o fato de ter sido o texto desse blog que mais provocou reações, comentários, e pareceu atrair a atenção de mais participantes. A surpresa decorrente desse fato não é outra senão a complexidade do conteúdo que procurei evocar, que sempre traz muita controvérsia. A segunda surpresa foi decorrente das observações de colegas, que não entraram na raiz do assunto conforme a minha suposição inicial.

Dessa maneira, sinto-me motivado a dar um passo adiante no assunto da imagem corporal, segundo teorizada por Jacques Lacan. E já começo por dizer que todo o cenário de uma experiência pessoal não teve outro motivo que não o de dar lugar a um pensamento fundamental nos estudos de Lacan sobre o processo de constituição do sujeito.

Vou buscar marcar um ponto, que julgo de essencial reforço, dadas as observações que me foram feitas a respeito desse pequeno relato de uma experiência de "estranheza" com minha própria imagem. Seria um empobrecimento - ou mesmo uma ofensa - à teoria do "mestre francês" tentar replicar sua enorme e complexa contribuição teórica, e abandono essa via de saída, por motivos óbvios. Quem quiser estudar Lacan - ou qualquer outro autor de psicanálise, a começar por Freud - com mais profundidade, não vai fazê-lo por intermédio do meu modesto blog, no qual proponho apenas um espaço para reflexão e debate de um assunto tão rico e fascinante quanto a abordagem analítica do "ser de fala". Ainda assim, como "levantei a lebre", me julgo na obrigação de esclarecer algo de seu "trajeto".

O esclarecimento que cabe sobre o texto em referência é um só: quando Lacan escreve o "Estádio do espelho como formador da função do eu" (Lacan, J., "Escritos", pág.96 na versão brasileira da Editora Zahar), Lacan refere-se a um momento de fundamental importância na concepção subjetiva e na dissociação entre o corpo experimentado e o corpo "imagem". Ou seja, o bebê, que naquele momento de sua vida, experimenta uma sensação de corpo fragmentada, confusa, descoordenada, consegue verificar e perceber sua imagem projetada no espelho. Ele vê um corpo integrado e "resolvido", enquanto experimenta um corpo difuso e inacabado. Essa marca permanece como um divisor definitivo e permanente entre a experiência de corpo e a imagem corporal. Sendo ainda mais claro e objetivo, não faz parte da experiência humana, ter um conhecimento do seu "corpo real", ou de como ele é visto pelos outros.

Sei o quanto o assunto parece estranho e soa pouco crível para aqueles que não estão habituados ao estudo da teoria psicanalítica, o que me causou a surpresa pelo número de comentários sobre esse texto. Ciente de que esse adendo deve produzir um debate mais discordante, presto esse esclarecimento na esperança de continuar promovendo o assunto e as opiniões, críticas e o que vier daqueles que estiverem interessados em se engajar nesse "bate-papo" psicanalítico.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O outro no espelho

Nesse final de semana prolongado por um feriado (que consegui "emendar") na terça-feira, fui com minha esposa para a casa dela na praia, algo que não fazíamos há vários meses.

Nesse período mais recente, tenho retomado, gradativamente, uma certa rotina de atividades físicas, que tinha sido interrompida por mais de um ano em função de uma hérnia de disco, que estava me deixando enlouquecido de tanta e tão permanente dor.

Recentemente, há coisa de dois ou três meses, recebi a recomendação de uma fisioterapeuta, e comecei um trabalho de recuperação com ela. Tenho que dizer que, desde a primeira consulta, ela falava com tranquilidade em eliminar a dor: para quem estava com dor 24 horas por dia, 7 dias por semana, por um período que já somava uns 16 meses, aquilo era música da melhor qualidade para os meus ouvidos que, esperançosos, queriam acreditar naquela simplicidade, na segurança que ela demonstrava nas palavras e na avaliação física, conforme ia "dissecando" meu problema para definir a forma de trabalhar que iríamos adotar. Depois de duas sessões, eu já sentia algum alívio, e em menos de dois meses chegou um dia em que eu me vi completamente sem dor! Parecia um milagre! Eu nem queria contar pra ninguém, com medo de que o "encanto" passasse.... mas não passou! E, orientado sobre a postura, mantendo a disciplina dos exercícios e duas sessões semanais de fisioterapia, tenho me lançado a velhos desafios, voltando à esteira, à natação, duas horas semanais de musculação, uma aula de pilates - que também contribui muito para a manutenção da postura e fortalecimento da musculatura que equilibra a base da coluna, onde está localizada a minha hérnia.

Você que me acompanhou até aqui deve estar pensando: que relação essa história toda tem, afinal, com a psicanálise que, até onde consta, é o tema desse blog?

Pois bem, voltemos à praia: da última vez em que eu estive lá, eu estava sob o efeito de corticóides, o que me fazia parecer mais inchado do que um pacu! - não pensem que a psicanálise se fará por rimas.... Além de inchado, eu estava por mais de um ano sem praticar nenhuma atividade física ou esportiva, portanto meu corpo estava flácido, com uma camada considerável de gordura bem espalhada por meus 190 cm de altura, conferindo uma forma - ou falta dela - que eu acho que nunca tive em meus 45 anos de vida (destaque para o ACHO, por motivos que se seguirão em minha explicação). E a psicanálise?

A psicanálise chegou no exato momento em que entrei na casa da praia, tirei a camisa - estava calor, apesar da chuva - e fui ao banheiro. Quando acendi a luz e olhei para o espelho vi uma outra pessoa, que não era quem eu tinha visto da última vez em que fui à praia. O que tinha se passado com aquela figura, agora tão diferente?

Vejam bem que estamos falando de respostas óbvias: um ano e pouco de total sedentarismo seguidos de um cuidado (ainda não mencionado) com a minha dieta e com a retomada de uma rotina de atividades físicas / esportivas. Qualquer um sabe que isso deve promover uma mudança no percentual de gordura corporal, na quantidade de "massa magra", etc. Mas o relevante, nesse caso, é que eu tinha me visto TODOS OS DIAS  no espelho da minha casa durante esse processo, e não seria capaz de apontar qualquer mudança na minha aparência física! Contudo, a imagem daquele cara, fixada na minha memória, naquele espelho, há uns 4 meses e muitas horas de esforço antes eram incrivelmente contrastantes com o que eu podia observar naquele exato momento. E o espelho de casa, que horas antes me mostrara EXATAMENTE a mesma imagem que eu via ali, mas havia mostrado todas as etapas do processo, NÃO ME PROPORCIONAVA O CONTRASTE!

O ponto em questão é que, como sabemos, temos a nosso respeito, uma imagem EXTERNA, que começa no "O Estádio do Espelho como formador da função do eu" (Lacan, J, "Escritos"), e nos acompanha sempre como uma imagem que associamos a nós, mas que DESCONHECEMOS senão como UMA PROJEÇÃO daquilo que somos enquanto corpo físico.

A mudança de espelho produziu o contraste porque lá na praia, a última vez em que eu havia visto O QUE CHAMO DE MEU CORPO, ele tinha outra forma, outra distribuição de massas. Eu não poderia notar isso no espelho em que me vejo diariamente, o que confirma o quanto a imagem que carregamos de nós mesmos é parcial e externa e sempre equivocada, fragmentada. Ao chegar a outro lugar, onde eu havia visto meu corpo em outro momento, não conseguia reconhecer aquela imagem, e me espantei com uma forma muito diferente da anterior, QUE NÃO HAVIA SIDO AFETADA, DE FORMA ALGUMA, pelas imagens diárias que tenho de mim mesmo em minha casa!

Essa experiência impressionante é tão real quanto o nosso desconhecimento sobre nosso corpo, que permanece como uma "imago" cristalizada de um ser que vimos projetado em algum tipo de espelho, em algum momento. E as mudanças pelas quais esse corpo passa NÃO TÊM UM REGISTRO PSÍQUICO!

E não estou falando nada estranho, quando pensamos nas pessoas que perguntam: "que idade você acha que eu tenho?", sentindo-se jovens por causa de um cabelo pintado quando sua pele parece um maracujá!, ou quando vemos um homem muito gordo apontando para outro e dizendo: "minha barriga não é daquele tamanho, é?" e nós vemos que, na verdade, é muito maior!

Fica muito mais fácil entender as situações mais extremas dos distúrbios de auto-imagem, as anorexias, e outras distorções dos tempos modernos, como as chamadas "vigorexias" e outras formas de reação a uma imagem distorcida de si próprio. Afinal, NINGUÉM TEM UM REGISTRO PSÍQUICO FIDEDIGNO DE SEU PRÓPRIO CORPO, ou ninguém sabe exatamente como é.

Voltaremos a esse assunto!

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

E a tal psicanálise?

Uma das perguntas mais freqüentes que se faz a um psicanalista, e cuja resposta não é exatamente simples, refere-se ao “o que”. Ou seja: o que é a psicanálise?

Vou tentar responder isso de uma forma menos técnica, porque ela (a visão estritamente técnica) acaba redundando em mais dúvidas para quem é leigo no assunto, quando uma das maiores conquistas da psicanálise, senão SUA MAIOR E MAIS RELEVANTE CONQUISTA, é dar um lugar para o sofrimento humano. Portanto, já começando a simplificar, a análise é uma forma de terapia, que visa o alívio do sofrimento daqueles que procuram esse caminho, ou essa abordagem terapêutica.

As coisas não podem permanecer tão simples, nesse ponto, e tenho que dizer que a análise tem, em comum com outras abordagens terapêuticas, apenas a “intenção” de promover uma forma de “cura” das situações de sofrimento. As coincidências, contudo, param por aí, exatamente quando começam a ser necessárias algumas explicações, ou antes, esclarecimentos, porque não estamos falando de algo misterioso ou inacessível, mas sim de uma visão singular e muito própria da abordagem analítica. Trocando em miúdos, a análise enxerga e trata como sintomas o que outras disciplinas costumam abordar como “o problema em si”. Quando a psiquiatria, por exemplo, classifica e trata um "quadro depressivo", a análise busca desvelar as origens desse sofrimento, “analisando” seus caminhos e pesquisando suas dimensões não explícitas.

Podemos exemplificar esse tipo de situação de uma maneira simples: “suponhamos uma pessoa que tenha um animal de estimação. Ela tem grande amor por esse animal (aqueles que têm seus “pets” sabem bem do que estou falando!). Elas criam muitos vínculos com seus “amigos de outras espécies”. Vamos supor um caso específico em que esse vínculo afetivo possa estar “encobrindo” ou “tirando do primeiro plano” uma outra falta: uma ausência familiar, uma infância com poucas coisas boas a lembrar, a distância ou a falta de uma pessoa amada. Sabemos que um dos problemas das relações com nossos amigos “peludos” é que eles, geralmente, vivem muito menos do que nós. E um dia, seguindo a ordem natural das coisas, perdemos nosso amigo do peito! A pergunta que cabe aqui, analiticamente falando (lembrem-se de que estamos falando de uma situação simples, mas absolutamente possível) é: “Quantas dores choramos ao sofrer pela perda desse amigo?” –

A resposta mais objetiva é: tantas quantos caminhos nossos afetos tenham percorrido e simbolizado nesse amigo que se foi. E quantos apelos esse amor que nos foi dedicado pode evocar? A constância, a lealdade, a fidelidade, o “para sempre”, o incondicional. Quantos vazios e quantas carências podem estar inseridos nessa perda e nesse “amor”? E quanto se perde quando ele se vai?

Esse tipo de pergunta não tem resposta universal, nem única, nem visível ou direta. Pessoas são seres únicos, com histórias únicas, com amores únicos, com reações que nos diferenciam, que nos tornam singulares e distintos diante do mundo, dos fatos, das “coisas da vida”. E as produções e “sintomas” criados pelo curso singular e próprio, nesse rio encravado nas almas de cada indivíduo é a parte do mistério, das dores e dos sofrimentos que a análise procura desvelar.

O curso de uma abordagem analítica é o de perseguir o que não está à vista, o que não foi dito, o que não foi possível de perceber ou entender. Os sintomas são a conseqüência que se produz quando as emoções não ganham o acesso à ação ou à palavra, e aquilo que “desaparece” quando se promove esse encontro com o que foi preciso esquecer.

Quem já passou por uma análise pode atestar que, em certo sentido, o caminho de uma análise é auto-explicativo. Cada indivíduo que atravessa o curso de uma análise pessoal acaba por entender muito da sua própria dinâmica psíquica, e ganha a condição de se perceber em seus desejos, sofrimentos e sintomas a partir de uma nova perspectiva.

Esse é um convite que se pode fazer a quem passa por uma situação difícil, que se sente sofrendo e quer “se livrar” desse sofrimento. A análise é uma via real, uma oferta de escuta do singular e de apropriação de um espaço que foi perdido durante a jornada, mas que pede passagem na forma de sintomas e sofrimento.

Longe de esgotar esse assunto, que como eu comecei dizendo, está longe de ser simples, gostaria de inaugurá-lo, como um convite a uma segunda olhada, a uma atenção especial e uma consideração muito importante àqueles que estiverem em busca de um lugar para sua dor.

Viver

Em 1917 Freud escreve um texto sob o título de “luto e melancolia”. Descreve o processo de luto como a perda de um objeto “investido” de afeto. A falta do objeto deixa esse afeto “solto”, ou sem ligação, sem possibilidade de ser vivenciado e descarregado psiquicamente: por ações físicas, pelo contato, pela realização do amor.

O luto é algo recorrente na vida, e pode se relacionar a pessoas, a momentos, a épocas das nossas vidas, a amizades, a amores. Em todos os casos, o sujeito que perde seu objeto de amor, tem que construir a possibilidade de reinvestir esse afeto cujo laço objetal foi rompido. Esse investimento
acontece, em um primeiro momento, com o retorno desse afeto ao próprio sujeito, com a capacidade de se reinvestir desse amor, de voltar para si esse afeto cujo elo de ligação com a sua realização foi desfeito. A partir desse retorno “narcísico” do afeto cujo objeto se perdeu, é possível refazer ou construir ligações com outros objetos, com outras pessoas, outros amores, outros amigos, outros
momentos.

A idéia que me ocorre nesse texto é uma reflexão sobre essas infindáveis perdas, que vivenciamos diariamente e que, vez ou outra, nos fazem chorar compulsivamente ao escutar uma determinada música, assistir a um romance “água com açúcar”, ou ao ler certa passagem da vida de um personagem, real ou fictício, de um livro sobre o qual nos debruçamos.

As perdas são reparadas, os afetos são recuperados, reinvestidos, mas as marcas fazem parte de nós, como traços permanentes em nossas histórias e em nossa maneira de nos relacionarmos com o mundo. Viver uma perda é sofrer de uma ferida. Recuperar-se dela, é ver o tecido se refazendo, a inflamação diminuindo, saber que ela vai cessar de purgar e, eventualmente, sarar por completo. Mas é também ver nascer em seu lugar uma cicatriz, tão funda e visível quanto importante e séria foi a ferida.

Vivemos um vida marcados por nossas conquistas, por nossos amores, por nossas amizades, por nossas famílias. Somos cercados, criados, embalados e construídos em nossas relações com os outros, seja na sua experiência e felicidade, ou nas suas perdas e lutos.

Cicatrizes não doem, não sangram, não purgam. Mas, vez ou outra, nos fazem lembrar da beleza que as precedeu e, nesses momentos, entramos em contato com a magia e a dor, com a poesia e o fantasma, com a vida e com a falta dela.

É nesse pêndulo que nossa vida toma seu rumo. São nesses encontros e desencontros que nascemos, crescemos, somos felizes, sofremos, vivemos e morremos. São essas dores de feridas que não podemos tratar, porque já se foram com o tempo, embora suas lembranças e cicatrizes permaneçam por toda a nossa existência, que nos fazem temer o abismo, não pelo risco de cair, mas pelo desejo e de pular.

Esse é o ciclo da vida, espiral de experiências vividas e revividas, sonhadas, sentidas, relembradas. A vida não pode ser experimentada sem que seja construído um enorme castelo para abrigar o saldo inevitável e indelével de nossas saudades.

O equilibrista de verdade vai ter que encontrar seu caminho em uma corda bamba, passos estreitos e instáveis que oscilam entre o prazer e a dor. Alguém falou que seria fácil?